Educação para o Gosto - Fundamentos 1/5

Educação para o Gosto - Fundamentos 1/5

03/03/2020
O objetivo deste trabalho é apresentar resultados dos primeiros estudos acerca da elaboração do conceito e da prática da "Educação para o Gosto" e seus desdobramentos. Para elaborarmos tal conceito, dissertaremos sobre temáticas que envolvem a

Educação para o Gosto:

fundamentos e reflexões sobre o ato de cozinhar e de comer

 

Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber,

um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível.

(Roland Barthes)

 

Acabar com a fome

não é oferecer qualquer tipo de comida.

Tem que oferecer alimentos produzidos

de maneira limpa, justa, promovendo

o desenvolvimento econômico e social.

A fome é a ponta de um iceberg de violações de direitos.

Elisabetta Recine (ex-presidente do CONSEA)

 

  1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é apresentar resultados dos primeiros estudos acerca da elaboração do conceito de Educação para o Gosto e seus desdobramentos. Para elaborarmos tal conceito, dissertaremos sobre temáticas que envolvem a alimentação a partir de três âmbitos que se entrelaçam e serão nossos pontos de referência: a cultura, a integração social e a possibilidade de diálogos entre saúde e prazer. O material que redunda de nossas pesquisas é a base de conteúdos com a qual atuamos no projeto Sabores & Saberes: Educação para o Gosto, o qual será descrito neste artigo.

Como percurso metodológico, optamos por uma revisão bibliográfica que nos possibilitou conhecer e sintetizar importantes conceitos do contexto da alimentação como elemento da cultura, de dados estatísticos que nos ajudam a compreender o panorama brasileiro sobre alimentação e seus principais problemas e desafios. Com isso, pudemos partir para a tarefa de constituir o conceito de Educação para o Gosto, visando a trabalhar a educação não formal como estratégia de sensibilização para as principais questões por nós encontradas.

  1. Algumas QUESTÕES SOBRE ALIMENTAÇÃO NO BRASIL

Os problemas alimentares no Brasil vêm crescendo junto ao mesmo panorama mundial: questões ligas à volta do espectro da fome, agora aliadas ao excesso de peso e obesidade em, por vezes, pessoas desnutridas: um fenômeno contemporâneo. Eis o panorama que queremos denunciar e combater a partir das estratégias de educação não formal aqui propostas.

Com a rapidez da vida contemporânea, parte da parcela da população que tem o privilégio de se alimentar, realiza suas refeições de maneira automática. Essa automaticidade do ato de se alimentar é negativa, pois não se presta mais atenção ao que se come devido a diversos fatores. Dentre estes, entendemos que principalmente devido à escassez de tempo ou à sua má distribuição e aproveitamento. Mas, é preciso lembrar que “o tempo é o ingrediente que falta em nossas receitas e em nossas vidas” (POLLAN, 2014, p. 173). Com isso, as pessoas estão comento mal, tanto do ponto de vista nutricional (que não é nosso objetivo analisar aqui), quanto do ponto de vista da qualidade da experiência da alimentação em si. Exemplo disso é que a ‘correria’ do dia a dia é uma das principais justificativas para a crescente substituição do alimento in natura por alimentos ultraprocessados (que trazem consigo a promessa de uma maior praticidade, eficiência e facilidade de preparo em relação aos alimentos in natura – promessa essa que nos leva ao horizonte da ‘economia’ de tempo).

Para um breve alinhamento conceitual, utilizamos como referência de nosso trabalho o Guia Alimentar para a População Brasileira (BRASIL, 2014) em sua 2ª edição (1ª reimpressão) do Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica de 2014. Dele utilizamos os conceitos de alimentos:

 

  1. In natura como aqueles que “são obtidos diretamente de plantas ou de animais e não sofrem qualquer alteração após deixar a natureza”[1]
  2. Ultraprocessados:

 

são formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos (óleos, gorduras, açúcar, amido, proteínas), derivadas de constituintes de alimentos (gorduras hidrogenadas, amido modificado) ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas como petróleo e carvão (corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários tipos de aditivos usados para dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes). Técnicas de manufatura incluem extrusão, moldagem, e pré-processamento por fritura ou cozimento[2]

 

A ABESO – Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica define alimentos ultraprocessados como sendo aqueles que são

 

produzidos com a adição de muitos ingredientes como sal, açúcar, óleos, gorduras, proteínas de soja, do leite, extratos de carne, além de substâncias sintetizadas em laboratório a partir de alimentos e de outras fontes orgânicas como petróleo e carvão. Assim, tais alimentos têm prazo de validade maior, alteração de cor, sabor, aroma e textura. São exemplos de ultraprocessados: biscoitos recheados, salgadinhos ‘de pacote’, refrigerantes e macarrão ‘instantâneo’[3].

 

A despeito de sua pretensa maior facilidade no preparo, tais alimentos têm, via de regra, baixa qualidade nutricional e são prejudiciais à saúde. Muitos aditivos usados no Brasil já foram banidos em outros países (Aun et all, 2011). Além disso, a presença de tantos aditivos artificiais é utilizada para hiperestimular as papilas gustativas, de certa maneira, viciando-as a um uso cada vez mais constante desses produtos. Com isso, a degustação de alimentos in natura aparentemente ‘perde’ sabor frente a esse hiperestímulo e, por conseguinte, as pessoas diminuem o consumo dos alimentos naturais, pois neles não sentem seu ‘sabor’.

Uma primeira hipótese que lançamos é que muito do consumo deste tipo de produto se dá por completa falta de conhecimento dos consumidores, por não saberem ler os rótulos de informações nutricionais e demais dados presentes nas embalagens, que mesmo que contenham algumas informações ainda são dúbias, omitem dados importantes e estão longe de serem, efetivamente, informativas. Esse é um dos motivos chave para pensarmos numa Educação para o Gosto: a necessidade de conhecimento daquilo que comemos.

Entendemos, ainda, que as mudanças alimentares hiperestimuladas pela indústria alimentícia, não poderiam se dar sem uma vigorosa mudança cultural nos hábitos alimentares dos consumidores. A mídia, a serviço dessa indústria alimentícia, é uma das principais vias de construção e propagação desta mudança de hábitos. Os produtos ultraprocessados são ‘vendidos’ com apelos como ‘praticidade’, ‘modernidade’, ‘prazer’ e, paradoxalmente, como fontes de ‘saúde’. Mas, uma análise de seus ingredientes e dados nutricionais mostra que, via de regra, tais produtos são compostos em sua grade maioria por açúcares, sais, gorduras, farinhas brancas e aditivos, ou seja, são, normalmente, nutricionalmente pobre. O marketing pinta o produto com o rótulo de saudável e prático e, assim, por um lado, mascara suas amplas deficiências do ponto de vista nutricional (aspectos relativos à saúde) e, por outro, hiperestimula seu consumo alegando, do ponto de vista da experiência do ato de se alimentar, aspectos relativos ao prazer. A junção desses pontos de vista é o que nos interessa.

Frente a essa ação agressiva dos mercados de alimentação industrial, as populações tendem a abandonar tradições e hábitos alimentares: (1) o ‘comer juntos’ é ato cada vez mais difícil frente à correria da vida na contemporaneidade; (2) o ato de preparar o alimento está, igualmente, cada vez mais racionalizado e raro. Por fim, as crianças são o principal alvo das publicidades de alimentos cada vez mais vazios[4].

O ato de se alimentar não se dá apenas à mesa, ele vem, antes, com as atividades de cultivo, criação, transporte, comércio e preparo, atividades estas plenas de saberes de caráter cultural alimentar e cada vez mais achatadas por conta das monoculturas que se espalham em território nacional.

Na ponta do amplo circuito da alimentação, o trabalho dos produtores e artesãos locais vai sendo desvalorizado, quando não extinto, como no caso das pequenas propriedades que têm arrendado seus lugares (cultura, vida, existência) para o plantio de monoculturas, como a cana-de-açúcar na região da cidade de Piracicaba, interior do estado de São Paulo. Com isso, ingredientes, produtos e saberes regionais vêm sendo esquecidos ou menosprezados e manifestações culturais estão se perdendo. Como havíamos dito, as amplas transformações que a indústria alimentícia vem realizando não são apenas nos produtos finais, mas mudanças culturais estruturais, profundas e sem precedentes.

 

Continua.........

 



por Gabriela Brucoli
Gabriela Brucoli

Desde sempre na cozinha, cozinhando, experimentando, inventando e comendo!!! Sempre atenta à qualidade e origem dos ingredientes que utilizo, pois acredito que bons ingredientes são a alma de um bom prato. Atenta a sazonalidade, pois a natureza é inteligente e devemos respeitá-la.